Relato de Richard Phillips mostra mais uma pessoa afetada pelo falho sistema prisional americano e pela escravidão justificada pela 13ª emenda. Aos 22 anos, o americano Richard Phillips era um típico rapaz que queria construir sua vida nos Estados Unidos. Natural de Detroit, no Michigan, ele trabalhava como auxiliar administrativo em uma montadora de automóveis e tinha dois filhos.
Esta reportagem faz parte da série “O Sonho Americano”, do Jornal Nacional. A equipe da TV Globo percorreu estados-chave nas eleições presidenciais dos EUA para descobrir o que está impactando os eleitores neste ano. O quinto capítulo é sobre racismo.
Episódio 1, Democracia: Crianças arrecadam US$ 1 milhão para construir parquinho e incluir alunos com deficiência em escola dos EUA
Episódio 2, Economia: ‘Cheeseheads’: Como o queijo virou símbolo de Wisconsin e o que isso revela sobre a economia americana
Episódio 3, Inflação: Das casas ao ‘tailgate’: como a inflação tem distanciado os jovens do sonho americano nos Estados Unidos
Episódio 4, Aborto: ‘Janes de Chicago’: conheça a rede secreta de mulheres que ajudou a mudar a história do aborto nos EUA
Episódio 5: ‘Preferiria morrer a confessar um crime que não cometi’: a história do homem negro que passou 46 anos preso injustamente
De origem humilde, Richard passou a infância dormindo no sótão de uma pensão junto com seu irmão. Sua mãe ganhava US$ 8 por dia, mas fazia o que podia para cuidar das crianças. Como acontece com muitos garotos de bairros periféricos norte-americanos que não possuem tantas opções, Richard largou a escola antes de completar o ensino médio e se preparou para as sobras que conseguisse agarrar da vida.
Mas logo descobriu um talento único: “Eu conseguia digitar 80 palavras por minuto”, o que lhe garantiu o emprego como auxiliar administrativo da montadora de carros. Pouco tempo depois, Richard se casou, teve seus dois filhos e viu o sonho americano a um palmo de distância.
Com essa promessa de futuro, Richard aproveitava as festas que adorava. Detroit tinha o 20 Grand Motel, onde os Estados Unidos assistiram o surgimento de um dos maiores movimentos musicais da história: o Motown.
Grandes astros da música começaram tocando no 20 Grand Motel. Entre eles, Temptations, Stevie Wonder e Marvin Gaye, artistas que viraram ícones do movimento civil contra o racismo. Mas para Richard, o local seria o ponto de partida da maior injustiça de sua vida.
“Eu estava com um amigo que tinha roubado uma loja num Mustang Laranja. A polícia apareceu e me levou preso com ele”, conta.
Na delegacia, conta Richard, o dono da loja precisava reconhecer o ladrão: “Ele disse: ‘é o número 4.’ Adivinha quem era o número 4? Eu! E eu nunca tinha visto aquele cara na minha vida.”
A situação, que já parecia desesperadora o suficiente, só piorou. Richard não podia entregar o amigo, pessoas que faziam isso morriam assim que saíam da cadeia. E o tal amigo aproveitou a oportunidade para se livrar da culpa de um assassinato e jogá-lo nas costas de Richard enquanto ele cumpria pena. A sentença foi de prisão perpétua.
Escravidão contemporânea
Na cadeia, Richard Phillips trabalhava fazendo placas de carros para o estado e ganhava US$ 4 por dia, apenas o suficiente para que conseguisse comprar seus produtos de higiene.
Essa situação é comum nos Estados Unidos, onde muitas cadeias são privadas, funcionando como negócios em que os donos vendem o trabalho dos presos e pagam pouco. Isso tem base na Constituição americana, a partir da 13ª emenda, a mesma que, ironicamente, proíbe a escravidão.
‘A escravidão e o trabalho involuntário estão proibidos, a não ser por pagamentos de um crime’, diz a emenda americana.
Mas isso levanta o questionamento: o que de fato mudou com a abolição da escravidão? Afro-americanos têm cinco vezes mais chances de serem presos do que brancos nos Estados Unidos. A cada dez negros, para oito deles o sonho americano simplesmente não existe. Para eles, o sonho de igualdade, tão sonhado por Martin Luther King, não passa de um discurso do passado que nunca tomou forma no presente.
Ausência nas votações
A falta de realidade do sonho americano é também um desincentivo para votar e isso é visto na prática. A população negra é a que menos participa das eleições nos Estados Unidos, onde o voto não é obrigatório.
Na votação de 2020, apenas 42% dos negros votaram, 92% deles em Joe Biden, essenciais para a vitória do atual presidente americano em estados muito importantes, como Georgia, Pensilvânia e Michigan.
Neste ano, muitos dizem que vão apoiar a atual vice e candidata democrata Kamala Harris, mas já é perceptível que ela não possui tanto apoio quanto tinha Barack Obama, o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos.
Isso porque alguns eleitores pensam que, por ser filha de imigrantes, Kamala não sentiu na pele a experiência negra americana, vivida por pessoas como George Floyd ou, é claro, Richard Phillips, que passou 46 anos de sua vida atrás das grades por conta da incriminação injusta que sofreu aos 22 anos.
Recomeço depois de quase 5 décadas
Em 2017, um grupo de defensores públicos resolveu investigar o caso de Richard e conseguiram comprovar tudo o que ele vinha dizendo durante os últimos 46 anos, provando assim a sua completa inocência.
“O mais próximo que cheguei de receber uma proposta de acordo foi quando meu advogado me procurou e disse que talvez pudesse fazer um acordo. Naquela ocasião, eu lhe disse o que vou repetir agora… Prefiro morrer na prisão a admitir algo que não fiz”, comenta.
Richard Phillips ganhou uma indenização milionária do Estado e hoje vive de uma paixão que descobriu atrás das grades, a pintura, uma forma que encontrou de expressar tudo o que sentia enquanto estava preso.
Os 46 anos não voltarão, mas Richard mantém o bom espírito: “Eu tento não viver no passado.”
Ele se junta a vários outros artistas negros americanos, que, apesar de conviverem diariamente com um racismo estrutural e profundo, há décadas repetem uma mensagem de esperança e fé em um futuro melhor.
Esta reportagem faz parte da série “O Sonho Americano”, do Jornal Nacional. A equipe da TV Globo percorreu estados-chave nas eleições presidenciais dos EUA para descobrir o que está impactando os eleitores neste ano. O quinto capítulo é sobre racismo.
Episódio 1, Democracia: Crianças arrecadam US$ 1 milhão para construir parquinho e incluir alunos com deficiência em escola dos EUA
Episódio 2, Economia: ‘Cheeseheads’: Como o queijo virou símbolo de Wisconsin e o que isso revela sobre a economia americana
Episódio 3, Inflação: Das casas ao ‘tailgate’: como a inflação tem distanciado os jovens do sonho americano nos Estados Unidos
Episódio 4, Aborto: ‘Janes de Chicago’: conheça a rede secreta de mulheres que ajudou a mudar a história do aborto nos EUA
Episódio 5: ‘Preferiria morrer a confessar um crime que não cometi’: a história do homem negro que passou 46 anos preso injustamente
De origem humilde, Richard passou a infância dormindo no sótão de uma pensão junto com seu irmão. Sua mãe ganhava US$ 8 por dia, mas fazia o que podia para cuidar das crianças. Como acontece com muitos garotos de bairros periféricos norte-americanos que não possuem tantas opções, Richard largou a escola antes de completar o ensino médio e se preparou para as sobras que conseguisse agarrar da vida.
Mas logo descobriu um talento único: “Eu conseguia digitar 80 palavras por minuto”, o que lhe garantiu o emprego como auxiliar administrativo da montadora de carros. Pouco tempo depois, Richard se casou, teve seus dois filhos e viu o sonho americano a um palmo de distância.
Com essa promessa de futuro, Richard aproveitava as festas que adorava. Detroit tinha o 20 Grand Motel, onde os Estados Unidos assistiram o surgimento de um dos maiores movimentos musicais da história: o Motown.
Grandes astros da música começaram tocando no 20 Grand Motel. Entre eles, Temptations, Stevie Wonder e Marvin Gaye, artistas que viraram ícones do movimento civil contra o racismo. Mas para Richard, o local seria o ponto de partida da maior injustiça de sua vida.
“Eu estava com um amigo que tinha roubado uma loja num Mustang Laranja. A polícia apareceu e me levou preso com ele”, conta.
Na delegacia, conta Richard, o dono da loja precisava reconhecer o ladrão: “Ele disse: ‘é o número 4.’ Adivinha quem era o número 4? Eu! E eu nunca tinha visto aquele cara na minha vida.”
A situação, que já parecia desesperadora o suficiente, só piorou. Richard não podia entregar o amigo, pessoas que faziam isso morriam assim que saíam da cadeia. E o tal amigo aproveitou a oportunidade para se livrar da culpa de um assassinato e jogá-lo nas costas de Richard enquanto ele cumpria pena. A sentença foi de prisão perpétua.
Escravidão contemporânea
Na cadeia, Richard Phillips trabalhava fazendo placas de carros para o estado e ganhava US$ 4 por dia, apenas o suficiente para que conseguisse comprar seus produtos de higiene.
Essa situação é comum nos Estados Unidos, onde muitas cadeias são privadas, funcionando como negócios em que os donos vendem o trabalho dos presos e pagam pouco. Isso tem base na Constituição americana, a partir da 13ª emenda, a mesma que, ironicamente, proíbe a escravidão.
‘A escravidão e o trabalho involuntário estão proibidos, a não ser por pagamentos de um crime’, diz a emenda americana.
Mas isso levanta o questionamento: o que de fato mudou com a abolição da escravidão? Afro-americanos têm cinco vezes mais chances de serem presos do que brancos nos Estados Unidos. A cada dez negros, para oito deles o sonho americano simplesmente não existe. Para eles, o sonho de igualdade, tão sonhado por Martin Luther King, não passa de um discurso do passado que nunca tomou forma no presente.
Ausência nas votações
A falta de realidade do sonho americano é também um desincentivo para votar e isso é visto na prática. A população negra é a que menos participa das eleições nos Estados Unidos, onde o voto não é obrigatório.
Na votação de 2020, apenas 42% dos negros votaram, 92% deles em Joe Biden, essenciais para a vitória do atual presidente americano em estados muito importantes, como Georgia, Pensilvânia e Michigan.
Neste ano, muitos dizem que vão apoiar a atual vice e candidata democrata Kamala Harris, mas já é perceptível que ela não possui tanto apoio quanto tinha Barack Obama, o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos.
Isso porque alguns eleitores pensam que, por ser filha de imigrantes, Kamala não sentiu na pele a experiência negra americana, vivida por pessoas como George Floyd ou, é claro, Richard Phillips, que passou 46 anos de sua vida atrás das grades por conta da incriminação injusta que sofreu aos 22 anos.
Recomeço depois de quase 5 décadas
Em 2017, um grupo de defensores públicos resolveu investigar o caso de Richard e conseguiram comprovar tudo o que ele vinha dizendo durante os últimos 46 anos, provando assim a sua completa inocência.
“O mais próximo que cheguei de receber uma proposta de acordo foi quando meu advogado me procurou e disse que talvez pudesse fazer um acordo. Naquela ocasião, eu lhe disse o que vou repetir agora… Prefiro morrer na prisão a admitir algo que não fiz”, comenta.
Richard Phillips ganhou uma indenização milionária do Estado e hoje vive de uma paixão que descobriu atrás das grades, a pintura, uma forma que encontrou de expressar tudo o que sentia enquanto estava preso.
Os 46 anos não voltarão, mas Richard mantém o bom espírito: “Eu tento não viver no passado.”
Ele se junta a vários outros artistas negros americanos, que, apesar de conviverem diariamente com um racismo estrutural e profundo, há décadas repetem uma mensagem de esperança e fé em um futuro melhor.
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Postado em: 21:04