Partido Republicano contribuiu para que os boatos se espalhassem pela internet e Donald Trump levou o assunto para o debate contra Kamala Harris, sendo desmentido ao vivo pelo mediador. O sonho americano em Springfield
Em 2010, o Haiti foi alvo de um terremoto que jogou o país em uma crise sem precedentes. Cerca de 300 mil pessoas morreram e 1,5 milhão ficaram desabrigadas. O tremor agravou ainda mais os problemas econômicos e sociais do país, que acabou sendo abalado por uma crise política.
Esta reportagem faz parte da série “O Sonho Americano”. A equipe da TV Globo percorreu estados-chave nas eleições presidenciais dos EUA para descobrir o que está impactando os eleitores neste ano. O sétimo capítulo é sobre fake news.
O SONHO AMERICANO
Episódio 1, Democracia: Crianças arrecadam US$ 1 milhão para construir parquinho e incluir alunos com deficiência em escola dos EUA
Episódio 2, Economia: ‘Cheeseheads’: Como o queijo virou símbolo de Wisconsin e o que isso revela sobre a economia americana
Episódio 3, Inflação: Das casas ao ‘tailgate’: como a inflação tem distanciado os jovens do sonho americano nos Estados Unidos
Episódio 4, Aborto: ‘Janes de Chicago’: conheça a rede secreta de mulheres que ajudou a mudar a história do aborto nos EUA
Episódio 5, Racismo: ‘Preferiria morrer a confessar um crime que não cometi’: a história do homem negro que passou 46 anos preso injustamente
Episódio 6, EUA e o mundo: Dearborn: como uma cidade de 100 mil habitantes pode definir a eleição presidencial dos Estados Unidos
Episódio 7, Fake news: ‘Estão comendo pets’: como um terremoto piorou a crise no Haiti e influenciou na criação da maior fake news das eleições nos Estados Unidos
Nos anos seguintes ao terremoto, o Haiti foi marcado por protestos da população, violência e escândalos de corrupção. A crise piorou ainda mais em 2021, quando o então presidente Jovenel Moïse foi assassinado.
As gangues tomaram conta da capital, Porto Príncipe. Além disso, o país começou a ter dificuldades para receber ajuda humanitária, já que até o principal aeroporto do Haiti estava tomado. Diante deste cenário, muitos haitianos fugiram para os EUA.
Neste êxodo, o destino mais comum para quem vinha do Haiti era a Flórida. Mas já faz mais de três anos que isso mudou e a escolha dos haitianos passou a ser Springfield, que fica no meio do estado de Ohio. Nos anos 60, era uma cidade próspera por conta das fábricas que ficavam por perto, principalmente em uma época em que o sonho americano era acessível para quem trabalhava em qualquer uma dessas fábricas.
Mas essas empresas, com o tempo, migraram para outros países, o que causou uma diminuição natural na população de Springfield, da mesma forma como aconteceu em diversas outras cidades do Meio-Oeste americano.
Décadas disso fizeram com que, eventualmente, faltassem trabalhadores e a cidade ficasse abandonada, a ponto de que, em 2021, os Estados Unidos declararam que imigrantes haitianos que conseguissem chegar até a cidade poderiam ficar em asilo temporário.
Dentro de 3 anos, a oferta de empregos atraiu 20 mil haitianos para a cidade que, até então, tinha 50 mil habitantes.
“Eu descobri Springfield há 3 anos. Foi uma amiga que me convidou pra vir aqui (…) Eu vi os haitianos vindo pra cá porque as casas eram muito mais baratas do que em outros lugares e eles conseguiram trabalho”, comenta Gerna Vincent, que foi do Haiti para a cidade de Ohio em busca de novas oportunidades.
Haitianos ganharam uma nova vida em Springfield. Segundo Gerna, eles recebem em torno de US$ 4 mil e US$ 5 mil, além de hoje em dia terem um outro poder de compra, com a possibilidade de comprar carros e mandar as crianças para escolas.
Tudo isso até que um acidente colocou em risco esse sonho americano.
‘Americanos sendo levados à extinção’
Em agosto de 2023, uma criança de 11 anos foi morta depois que um ônibus atravessou o sinal. O motorista era um haitiano.
O incidente deu início a uma crise que deixou a cidade em erupção, com reuniões que a prefeitura promovia toda semana para ouvir a população americana, que se mostrava cada vez mais impaciente com os imigrantes.
“Acusações de racismo contra haitianos são só para distrair os americanos brancos do fato de que eles estão sendo levados à extinção”, disse uma das mulheres em uma dessas comissões da prefeitura.
A situação ganhou outra escala depois de um homem, que se identifica como influenciador das redes sociais, dizer que “[os haitianos] estão no parque pegando patos pelo pescoço e cortando a cabeça e comendo ali mesmo na estrada.”
Depois disso, moradores da cidade resolveram escrever uma carta para o senador do estado, que era ninguém menos do que JD Vance, hoje candidato à vice-presidência dentro da chapa de Donald Trump.
Em uma conferência em julho de 2024, o senador falou em uma conferência que aconteceu em Washington, D.C., sobre a situação de Springfield e criticou a presença das pessoas que vieram do Haiti:
“Eu os convido hoje a ir a Springfield, Ohio, e ver como a população está se sentindo por lá. O preço da moradia está nas alturas. E você não precisa reconhecer que esses 20 mil haitianos são pessoas más para reconhecer que há um problema.”
A maior entre as Fake News das eleições americanas
O clima piorou ainda mais quando uma mulher postou nas redes sociais um texto dizendo que alguém tinha visto um gato morto pendurado no varal da casa de um haitiano, acusando as pessoas que vinham do Haiti de comer o animal, além de também fazer isso com cachorros e patos.
Pouco depois, um vídeo de uma mulher comendo um gato na frente dos vizinhos começou a circular na internet e logo a reação das pessoas foi dizer que aqueles rumores eram verdade, que haitianos comiam animais em Springfield.
No entanto, a mulher no vídeo não era haitiana e o caso não ocorreu em Springfield.
Mas isso não impediu que a chapa de Donald Trump se aproveitasse do boato para tentar atacar imigrantes. O filho do candidato republicano aproveitou a polêmica para postar um vídeo na rede social X acusando as pessoas do Haiti de comerem gansos na cidade de Ohio.
O empresário Elon Musk, apoiador de Trump, publicou um meme no X sobre como um voto em Kamala Harris, candidata democrata, significaria apoiar haitianos comendo animais na vizinhança.
No Arizona, o Partido Republicano colocou um outdoor dizendo: “Coma menos gatinhos, vote Republicano!”
O próprio candidato à presidência, Donald Trump, levou isso adiante, inclusive no próprio debate com Kamala, dizendo que haitianos estão comendo cachorros, gatos e os pets das pessoas. O mediador desmentiu na hora e o prefeito de Springfield, do mesmo partido de Trump, se posicionou depois dizendo que se tratava de uma mentira.
O impacto de uma notícia falsa
Com o estrago já feito, Springfield começou a sofrer as consequências logo após o debate.
“Um candidato à presidência falar em rede nacional uma coisa dessas cria uma situação em que as pessoas podem se machucar. Muita gente não levou os filhos para o colégio. Muitos haitianos se mudando de Springfield”, diz a haitiana Gerna Vincent.
Na semana seguinte ao debate, a cidade recebeu 33 ameaças anônimas de bombas em hospitais, escolas e na prefeitura.
Mas também existe o efeito contrário, vindo dos haitianos que querem lutar contra a desinformação, que querem mostrar que foram para a cidade para trabalhar e, por isso, resolveram permanecer.
“Queremos apoiar a comunidade haitiana. Nós sabemos que é muita gente chegando aqui, para uma cidade pequena. Mas abemos que eles têm muito a oferecer em termos culturais e de trabalho responsável”, diz um morador.
Gerna abriu o primeiro mercadinho de produtos haitianos em Springfield, que tem muitos clientes. Ela também dá aulas de inglês para ajudar a integração.
Até hoje, não houve nenhuma prova de que alguém em Springfield tenha comido gatos ou cachorros, mas o que fica claro é que existem duas ideias muito diferentes neste lugar acerca do que significa o sonho americano.
De um lado, o desespero alimentado pelas mentiras contadas durante essas eleições americanas. Do outro, a esperança de que os haitianos podem voltar a encontrar um lar em Springfield, Ohio.
Em 2010, o Haiti foi alvo de um terremoto que jogou o país em uma crise sem precedentes. Cerca de 300 mil pessoas morreram e 1,5 milhão ficaram desabrigadas. O tremor agravou ainda mais os problemas econômicos e sociais do país, que acabou sendo abalado por uma crise política.
Esta reportagem faz parte da série “O Sonho Americano”. A equipe da TV Globo percorreu estados-chave nas eleições presidenciais dos EUA para descobrir o que está impactando os eleitores neste ano. O sétimo capítulo é sobre fake news.
O SONHO AMERICANO
Episódio 1, Democracia: Crianças arrecadam US$ 1 milhão para construir parquinho e incluir alunos com deficiência em escola dos EUA
Episódio 2, Economia: ‘Cheeseheads’: Como o queijo virou símbolo de Wisconsin e o que isso revela sobre a economia americana
Episódio 3, Inflação: Das casas ao ‘tailgate’: como a inflação tem distanciado os jovens do sonho americano nos Estados Unidos
Episódio 4, Aborto: ‘Janes de Chicago’: conheça a rede secreta de mulheres que ajudou a mudar a história do aborto nos EUA
Episódio 5, Racismo: ‘Preferiria morrer a confessar um crime que não cometi’: a história do homem negro que passou 46 anos preso injustamente
Episódio 6, EUA e o mundo: Dearborn: como uma cidade de 100 mil habitantes pode definir a eleição presidencial dos Estados Unidos
Episódio 7, Fake news: ‘Estão comendo pets’: como um terremoto piorou a crise no Haiti e influenciou na criação da maior fake news das eleições nos Estados Unidos
Nos anos seguintes ao terremoto, o Haiti foi marcado por protestos da população, violência e escândalos de corrupção. A crise piorou ainda mais em 2021, quando o então presidente Jovenel Moïse foi assassinado.
As gangues tomaram conta da capital, Porto Príncipe. Além disso, o país começou a ter dificuldades para receber ajuda humanitária, já que até o principal aeroporto do Haiti estava tomado. Diante deste cenário, muitos haitianos fugiram para os EUA.
Neste êxodo, o destino mais comum para quem vinha do Haiti era a Flórida. Mas já faz mais de três anos que isso mudou e a escolha dos haitianos passou a ser Springfield, que fica no meio do estado de Ohio. Nos anos 60, era uma cidade próspera por conta das fábricas que ficavam por perto, principalmente em uma época em que o sonho americano era acessível para quem trabalhava em qualquer uma dessas fábricas.
Mas essas empresas, com o tempo, migraram para outros países, o que causou uma diminuição natural na população de Springfield, da mesma forma como aconteceu em diversas outras cidades do Meio-Oeste americano.
Décadas disso fizeram com que, eventualmente, faltassem trabalhadores e a cidade ficasse abandonada, a ponto de que, em 2021, os Estados Unidos declararam que imigrantes haitianos que conseguissem chegar até a cidade poderiam ficar em asilo temporário.
Dentro de 3 anos, a oferta de empregos atraiu 20 mil haitianos para a cidade que, até então, tinha 50 mil habitantes.
“Eu descobri Springfield há 3 anos. Foi uma amiga que me convidou pra vir aqui (…) Eu vi os haitianos vindo pra cá porque as casas eram muito mais baratas do que em outros lugares e eles conseguiram trabalho”, comenta Gerna Vincent, que foi do Haiti para a cidade de Ohio em busca de novas oportunidades.
Haitianos ganharam uma nova vida em Springfield. Segundo Gerna, eles recebem em torno de US$ 4 mil e US$ 5 mil, além de hoje em dia terem um outro poder de compra, com a possibilidade de comprar carros e mandar as crianças para escolas.
Tudo isso até que um acidente colocou em risco esse sonho americano.
‘Americanos sendo levados à extinção’
Em agosto de 2023, uma criança de 11 anos foi morta depois que um ônibus atravessou o sinal. O motorista era um haitiano.
O incidente deu início a uma crise que deixou a cidade em erupção, com reuniões que a prefeitura promovia toda semana para ouvir a população americana, que se mostrava cada vez mais impaciente com os imigrantes.
“Acusações de racismo contra haitianos são só para distrair os americanos brancos do fato de que eles estão sendo levados à extinção”, disse uma das mulheres em uma dessas comissões da prefeitura.
A situação ganhou outra escala depois de um homem, que se identifica como influenciador das redes sociais, dizer que “[os haitianos] estão no parque pegando patos pelo pescoço e cortando a cabeça e comendo ali mesmo na estrada.”
Depois disso, moradores da cidade resolveram escrever uma carta para o senador do estado, que era ninguém menos do que JD Vance, hoje candidato à vice-presidência dentro da chapa de Donald Trump.
Em uma conferência em julho de 2024, o senador falou em uma conferência que aconteceu em Washington, D.C., sobre a situação de Springfield e criticou a presença das pessoas que vieram do Haiti:
“Eu os convido hoje a ir a Springfield, Ohio, e ver como a população está se sentindo por lá. O preço da moradia está nas alturas. E você não precisa reconhecer que esses 20 mil haitianos são pessoas más para reconhecer que há um problema.”
A maior entre as Fake News das eleições americanas
O clima piorou ainda mais quando uma mulher postou nas redes sociais um texto dizendo que alguém tinha visto um gato morto pendurado no varal da casa de um haitiano, acusando as pessoas que vinham do Haiti de comer o animal, além de também fazer isso com cachorros e patos.
Pouco depois, um vídeo de uma mulher comendo um gato na frente dos vizinhos começou a circular na internet e logo a reação das pessoas foi dizer que aqueles rumores eram verdade, que haitianos comiam animais em Springfield.
No entanto, a mulher no vídeo não era haitiana e o caso não ocorreu em Springfield.
Mas isso não impediu que a chapa de Donald Trump se aproveitasse do boato para tentar atacar imigrantes. O filho do candidato republicano aproveitou a polêmica para postar um vídeo na rede social X acusando as pessoas do Haiti de comerem gansos na cidade de Ohio.
O empresário Elon Musk, apoiador de Trump, publicou um meme no X sobre como um voto em Kamala Harris, candidata democrata, significaria apoiar haitianos comendo animais na vizinhança.
No Arizona, o Partido Republicano colocou um outdoor dizendo: “Coma menos gatinhos, vote Republicano!”
O próprio candidato à presidência, Donald Trump, levou isso adiante, inclusive no próprio debate com Kamala, dizendo que haitianos estão comendo cachorros, gatos e os pets das pessoas. O mediador desmentiu na hora e o prefeito de Springfield, do mesmo partido de Trump, se posicionou depois dizendo que se tratava de uma mentira.
O impacto de uma notícia falsa
Com o estrago já feito, Springfield começou a sofrer as consequências logo após o debate.
“Um candidato à presidência falar em rede nacional uma coisa dessas cria uma situação em que as pessoas podem se machucar. Muita gente não levou os filhos para o colégio. Muitos haitianos se mudando de Springfield”, diz a haitiana Gerna Vincent.
Na semana seguinte ao debate, a cidade recebeu 33 ameaças anônimas de bombas em hospitais, escolas e na prefeitura.
Mas também existe o efeito contrário, vindo dos haitianos que querem lutar contra a desinformação, que querem mostrar que foram para a cidade para trabalhar e, por isso, resolveram permanecer.
“Queremos apoiar a comunidade haitiana. Nós sabemos que é muita gente chegando aqui, para uma cidade pequena. Mas abemos que eles têm muito a oferecer em termos culturais e de trabalho responsável”, diz um morador.
Gerna abriu o primeiro mercadinho de produtos haitianos em Springfield, que tem muitos clientes. Ela também dá aulas de inglês para ajudar a integração.
Até hoje, não houve nenhuma prova de que alguém em Springfield tenha comido gatos ou cachorros, mas o que fica claro é que existem duas ideias muito diferentes neste lugar acerca do que significa o sonho americano.
De um lado, o desespero alimentado pelas mentiras contadas durante essas eleições americanas. Do outro, a esperança de que os haitianos podem voltar a encontrar um lar em Springfield, Ohio.
Ir para postagem original ”CLIQUE AQUI”
Postado em: 23:00